Antropologia e Globalização:
Desafios
da Antropologia ( também da Religião) ante o Impacto da Globalização[1]
Há
grande resistência entre os antropólogos no que tange a percepção da
globalização como um evento histórico, suscetível de ser tratado como objeto de
investigação. O discurso antropológico dominante procurou manter-se imune aos
desafios da globalização, tendo em vista os questionamentos feitos à própria
identidade da disciplina, fundamentada numa prática, a etnografia, supostamente
distinta e/ou oposta à globalização. Isso se trataria, no entanto, de uma
ilusão típica dos antropólogos conservadores.
Como sugerido por James Clifford, a antropologia se encontra em posição
particularmente vulnerável e reveladora diante das crises contemporâneas, o que
torna seus dramas disciplinares fontes privilegiadas para se compreender a
globalização.
A hipótese aqui é a de que haveria um
parentesco de fundo entre conservadorismo antropológico e parte considerável da
literatura sobre globalização. A disputa, em geral, se situa simplesmente na
questão da definição do que é determinante, se o local, o global ou alguma
combinação dos dois, ou seja, estamos diante de realidades inseparáveis da
própria ação humana.
Vista em termos de perspectiva, a questão da globalização exigiria uma leitura mais
detida da tradição antropológica, algo que enfrentasse não apenas os desafios
de um novo objeto, mas também a desnaturalização ou desconstrução de uma série
de hábitos profissionais com repercussão na avaliação da própria história da
disciplina, sobretudo na de algumas tendências hoje dominantes.
Como demonstrado na controvérsia entre Obeyesekere
e Sahlins, há dificuldades de relacionamento de uma disciplina estabelecida, no
caso a antropologia conservadora, com correntes gerais de pensamento que
refletem, com menor resistência, as tendências ou o espírito da época, aqui a
globalização. Obeyesekere reverbera no interior da antropologia algumas
preocupações que têm sido organizadas em torno da noção de
“pós-colonialismo”. Sahlins, por sua
vez, responde em nome da tradição (uma versão hegemônica) disciplinar. Contudo,
mesmo não dando o braço a torcer, a antropologia avança seletiva e
camufladamente, buscando não abalar os alicerces da disciplina.
Até a noção de cultura, tão associada à
identidade da disciplina, tem sido discutida, sendo revista e/ou tornando-se
objeto de múltiplas apropriações, provocando, assim, uma sensação de perda de
monopólio (até no mercado de trabalho). Tal sensação se expressa na forma de
uma demanda por ordem na disciplina.
Há, portanto, sérios desafios à antropologia
na contemporaneidade. O primeiro deles diz respeito à
generalização de uma sensibilidade com a qual a antropologia se identificava, a
diferença. A diferença vista agora não só para localizar o outro “externo”, mas para pensar as diferenças internas às sociedades, aos grupos, aos indivíduos para muito além
do que poderiam imaginar os clássicos da antropologia, quase desconstruindo, assim,
por exacerbação a própria, noção de cultura.
A antropologia passa a ser contestada de um
modo diferente do praticado pelo bom e velho etnocentrismo que ela acostumara a
ter como adversário, sendo, agora, ela mesma acusada de etnocentrismo e de
representante de um olhar externo. A antropologia, na verdade, foi
transformada, em alguns círculos, em cúmplice de uma ideologia dominante e
etnocêntrica. Não obstante tudo isso, porém, a tendência mais interessante no
momento possivelmente não seja a de retorno a um discurso universalista, mas de
um discurso oposto: o das semelhanças e
das aproximações contingentes. Oposto também ao discurso das diferenças
reificadas - que não leva às últimas conseqüências a discussão da alteridade -,
contestando, assim, uma exótica da
diferença. Esse discurso das semelhanças,
com ênfase no contingente, não anularia a diferença, apenas a sua exótica. E
estaria associado a um estranhamento que incluiria reflexivamente a nossa
própria condição, movimento do pós-estruturalismo que a antropologia como
disciplina jamais chegou a realizar até as ultimas conseqüências. Tratar-se-ia
de um reencontro com a “humanidade” e a uma diferença que, apostando num mundo
descentrado, se associaria menos à hierarquia (lugar-comum postulado pela
antropologia) e mais ao diálogo e, conseqüentemente, à pesquisa de semelhanças
que aproximem, mesmo na “interlocução” científica com os “objetos”.
Uma modificação lenta, desigual e sem
formalização na antropologia, mas ocorrida, quiçá nos últimos quinze anos, é a
que diz respeito à uma desconfiança crescente quanto à referência a totalidades
fechadas, que pressuporiam relações permanentes entre suas partes e com o
exterior. Isso tem se manifestado, como que em relação metonímica com a
globalização, nas revisões da noção de cultural, com a demanda por concepções
menos reificadas e que levem em conta uma dinâmica que inclui a sua permanente
“invenção” e o poder da ação humana como geradora de cultura, contra toda
impressão de imobilismo. Associado a isso há o reaparecimento de noções como hibridismo
e sincretismo, sempre presentes de alguma forma em outros discursos.
Há também uma ênfase crescente nos processos e nas interconexões concretas, quase
como uma retomada do difusionismo, mas
ganhando relevo as contingências, as negociações e os acordos entre os grupos
sociais.
Tais novas tendências têm ressonância nas
próprias concepções da pessoa, a qual
é cada vez mais percebida como complexa, sendo abaladas as noções fixas de
identidade construídas por meio de oposições.
O papel da reflexividade e da competência
relativizadora na constituição e reconstituição das identidades sociais também
tem sido destacado. A relação entre “social” e “cultural” tem igualmente estado
sujeita à revisão.
Alterações dessa natureza podem e têm sido
explicadas em termos de avanço do conhecimento e de aperfeiçoamentos
metodológicos, produtos da própria pratica da pesquisa. Essa, então, e não sua
rejeição, parece ser a nova linha de defesa disciplinar. Isso advêm da idéia de
que estamos diante de tendências que atravessam diferentes domínios, disciplinas
e, quiçá, sobretudo a consciência comum, em complexa inter-relação.
Sobre essa consciência comum, temos o exemplo
da pentecostalização, a qual, distante de uma tendência fundamentalista, se
utiliza da oposição entre as figuras de Deus e do Diabo como veiculo e
operador, através do neopentecostalismo, de uma espécie de troca que busca desfazer outros
dualismos, sem culpas. O propósito desse dualismo não
maniqueísta, mas utilitário, é reconciliar o antes irreconciliável no
pentecostalismo, a saber, os dois mundos incomunicáveis, o do aqui e agora e o
da salvação futura e metafísica. É aqui e assim que o terreno das
contingências, do aqui e agora e do cotidiano ganha centralidade. A clássica
oposição entre religiosidades de possessão (em que o tempo se identifica com um
eterno presente) e religiosidades messiânicas (de redenção e salvação) é
reconciliada. Tal empresta nova dignidade à ênfase na prosperidade, essa como
sinal de libertação, a qual, por sua vez, se confunde com a legitimação da
fruição dos bens mundanos, indicativo também de uma aproximação entre o humano
e o divino, outro dualismo posto em questão. A
questão não é mais sobre obra e graça, isto é, sobre salvação, mas sobre a
busca de uma nova linguagem religiosa que afirme e dê sentido a isso através da
reapropriação, resultado do descolamento
e autonomização da prática mundana. A quase total ausência de uma teologia
no sentido estrito não prejudica transformações que uma perspectiva
culturalista fixista e isolacionista não imaginaria como desdobramentos
possíveis da narrativa cristã. Essas transformações possivelmente estão em
relação oculta “sincrética” com outras tradições, inclusive orientais, por via
da crença no poder do pensamento, e seu desdobramento no poder da palavra, que
no Brasil encontrou terreno fértil para se desenvolver. Isso lhe emprestaria
surpreendente parentesco com a “Nova Era” e com a literatura dita “esotérica” e
a de auto-ajuda.
Hermeneuticamente, em nenhum desses casos é
possível detectar uma razão interna
que tornasse necessária essa convergência. No caso do pentecostalismo, por
exemplo, sua presença inicial caracterizava-se pelo ascetismo e pela
desvalorização do mundo, exatamente o oposto do que vem se revelando agora.
É como se, de fato, estivéssemos diante de uma ampla e potencialmente “global”
situação dialógica, mas que para ser plenamente entendida, e não banalizada nem
esvaziada de sentido, precisaria ser posta no contexto de um pano de fundo de
desejo de semelhança, presente e mediador até na constituição das diferenças,
que, se não anula, faz um reparo às energias postas na dimensão do “interno”,
reificada na definição moderna de “domínios” e, mesmo, “culturas”.
Alphonse Dupront (1993), no contexto
católico, sugeriu que estamos hoje diante de uma corrosão da cultura cristã
(uma descristianização) que impede a transmissão da mensagem religiosa por via
da tradição. Diante dessa constatação, o movimento pentecostal e o carismático
se imporiam: a volta do Espírito como sinal dos tempos, ultrapassando os
limites de uma racionalidade estabelecida. Reinterpretando a idéia de Dupront de
quebra da tradição no sentido posto pela literatura atual sobre destradicionalização,
podemos dizer que essa se
identificaria menos com a quebra da tradição e mais com a reflexividade
e conseqüente perda de alinhamento automático com a tradição, o que
seria aparentemente próprio de uma hermenêutica, que interrompe o pertencimento
ao mundo por tradição a fim de significar (Ricoeur,1995). Poderíamos,
então, associar essa “pentecostalização” a outros elementos ligados à
destradicionalização, como a ênfase no presente, nas diferenças, na
experimentação, no indivíduo e na ruptura com a noção de representação.
Niklas Luhmann e alguns sociólogos da
religião como Bryan Wilson, Peter Beyer, etc. falam de uma mudança nas
“funções” da religião, mudança oculta ao antropólogo, quiçá, por sua típica
ilusão, ele o campeão das contextualizações.
No campo religioso, a outra face da
pentecostalização poderia ser, como já indicado, uma generalizada
“desteologização” que não se restringiria aos grupos ditos pentecostais.
Mas na verdade, até dentro do espírito de Pentecostes — “o Espírito sopra
onde quer” — a pentecostalização poderia por sua vez ser aproximada de
outras experiências afetivas fortes, como as associadas em geral aos “estados
alterados de consciência” e à “libertação”. Libertação, aliás, também
comprometida com outro elemento — a ênfase pragmática nos resultados — que
parece substituir a ênfase clássica na conversão, na mesma medida em que as
manifestações substituem os argumentos.
Não se pode negar que a ênfase material e
simbólica na questão do dinheiro ao
mesmo tempo corresponde e produz uma ênfase e uma linguagem dos nossos tempos, como
também a utilização plena dos recursos da mídia
e das expressões musicais disponíveis.
A globalização, sem ser sinônimo de
totalidade, ocuparia a sua posição como o novo nome do desenvolvimento e da
modernização que se querem universais.
A globalização, evidentemente, tem de estar
sujeita a outros tratamentos além do que está sendo proposto aqui, cuja função
seria a de chamar a atenção para um pano de fundo do qual se supõe que o
reconhecimento tenha conseqüências.
[1] Resumo e/ou recortes de VELHO,Otávio.Globalização: Antropologia e Religião.
Rio de janeiro. MANA
3(1):133-154,1997.
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