sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O Sagrado e o Profano em Mircea Eliade (1907-1986)

ELIADE,Mircea.O sagrado e o profano.[tradução Rogério Fernandes].São Paulo:Martins Fontes,1992.Pgs.13-57.

          O historiador das religiões, Mircea Eliade, começa, em sua Introdução, por nos brindar com uma menção sintética e honrosa à obra de seu antecessor na pesquisa do Sagrado, Rudolf Otto. Eliade pondera que “em vez de estudar as ideias de Deus e de religião, Rudolf Otto aplicara-se na análise das modalidades da experiência religiosa [...] conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência” (ELIADE,1992,P.13). Otto dedica-se à irracionalidade da religião (ELIADE,1992,P.13). Diferentemente de Otto, e a partir de sua definição ampla e mais complexa do sagrado, isto é, “que ele se opõe ao profano” (ELIADE,1992,P.14), Eliade pretende “ilustrar e precisar essa oposição entre o sagrado e o profano” (ELIADE,1992,P.14).

          O homem toma conhecimento do sagrado por meio de sua hierofania, a qual sacraliza objetos e espaços que, não obstante, mantem o que são, sendo, contudo, outra coisa (sagrada) agora (ELIADE,1992,P.16). Eliade também tem por escopo “constatar que a dessacralização caracteriza a experiência total do homem não-religioso das sociedades modernas” (ELIADE,1992,P.17).

          O sagrado e o profano constituem dois modos de existir e/ou de ser no mundo, “duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história” (ELIADE,1992,P.18). E o interesse por esse objeto de estudo é multidisciplinar, interessando a todo “investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana” (ELIADE,1992,P.16).

          O primeiro capítulo propriamente dito é sobre o espaço sagrado e a sacralização do mundo ((ELIADE,1992,Pgs.21-57).  Não há homogeneidade espacial na experiência religiosa; “para o homem religioso, o espaço não é homogêneo [...] há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras” (ELIADE,1992,P.21).  A rotura na homogeneidade do espaço, ocasionada por uma hierofania, funda e/ou fixa ontologicamente o mundo, revelando, outrossim, uma realidade absoluta (ELIADE,1992,P.22). Na homogeneidade da extensão espacial, cria-se ou revela-se, por meio da hierofania, um “ponto fixo”, um “centro”, ponto de referência e de orientação existencial (ELIADE,1992,P.22). Pela criação de tal “ponto fixo”, o espaço sagrado oferece uma orientação em meio a homogeneidade caótica e/ou relativa do espaço profano, constituído este de “fragmentos de um universo fragmentado”, onde os espaços são relativos e/ou relativizados, sem um estatuto ontológico único, de acordo com as necessidades e/ou ditames de uma “sociedade industrial” (ELIADE,1992,P.23).

          Malgrado tudo isso, há também “lugares sagrados” no espaço profano que dizem respeito à “outra realidade”, diferente da do cotidiano (ELIADE,1992,P.24), porém sem dimensão religiosa. Trata-se de percepção não-religiosa de “outra realidade” e outra não-homogeneidade, símile do espaço sagrado, no espaço profano (ELIADE,1992,P.21).


          Sacralização do espaço profano pode se dar por meio de uma teofania ou mesmo apenas de um sinal, evocatio, auxiliado por animais, com o fim de livrar o homem da homegeneidade caótica, obtendo assim orientação (ELIADE,1992,P.26). Ainda sobre a sacralização do espaço e/ou do mundo, Eliade pontua que “a consagração de um território equivale à sua cosmização” (ELIADE,1992,P.29), o que significa, outrossim, a (re) criação do cosmos, do mundo e/ou sua ordenação cósmica (ELIADE,1992,P.29-30). Essas tomadas rituais de terra são repetições cosmogônicas (ELIADE,1992,P.29-30). A comunicação com o céu, subentendida e simbolizada na consagração territorial e sua cosmização, constitui-se fator primordial de orientação, orientatio, frente ao caos do “nosso mundo” (ELIADE,1992,P.32,55). A sacralização do mundo, então, nada mais é do que a busca pelo mundo primordial das divindades cosmogônicas, tendo em vista o inserir-se nesse mesmo mundo, nele vivendo e nele se completando: “é a experiência do Tempo sagrado que permitirá ao homem religioso encontrar periodicamente o Cosmos tal como era in principio, no instante mítico da Criação” (ELIADE,1992,P.58-57).

O Sagrado em Rudolf Otto (1869-1937)

OTTO,Rudolf.O Sagrado: um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e a sua relação com o racional.[Tradução Prócoro Velasquez Filho]. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista,1985. Pgs.7-54.

          O teólogo, historiador (das religiões) e filósofo Rudolf Otto, em sua obra revolucionária, publicada, originalmente, em 1917, o Sagrado, nos desvela a inovadora perspectiva da ideia do divino, denominada por ele de numinoso (de numen deus), como experiência religiosa não-racional (ou irracional), e/ou não esgotável racionalmente, e seus aspectos.

          Em sua Introdução, Otto começa por demonstrar a racionalidade do teísmo (cristão) no que tange à sua formulação e expressão por meio de conceitos, noções e predicados racionais, os quais tornam o divino tanto acessível ao pensamento e à análise, quanto suscetível à definição. Nas palavras de Otto, “Toda concepção teísta, e de maneira especial a concepção cristã de Deus, tem como característica essencial a compreensão clara da divindade e a sua definição através de predicados [...]” (OTTO,1985,P.7). Diante disso, Otto ressalta a superioridade do Cristianismo em relação às demais religiões por sua racionalidade na expressão do divino e/ou sagrado por meio de noções. Em seus termos, “o cristianismo usa noções [...] Esta é uma das características essenciais que marcam a superioridade do cristianismo sobre outras religiões.” (OTTO,1985,P.7).

          O autor adverte, malgrado, que tal racionalidade da experiência religiosa, em termos de noções, conceitos e predicados racionais, e sintéticos, não a pode esgotar, pois há algo de não-racional (ou irracional) na religião ou no sagrado. “Não se pode pensar que os predicados racionais que nós indicamos, e outros mais, esgotariam a essência da divindade” (OTTO,1985,P.8). “ A religião não se esgota em seus enunciados racionais” (OTTO,1985,P.1). A linguagem se refina, mas não pode esgotar o Sagrado: “Toda linguagem [...] tem por objetivo transmitir noções e quanto mais essas noções forem claras e inequívocas, melhor será a linguagem” (OTTO,1985,P.8).

          Caso não houvesse, no entanto, alguma racionalidade na ideia do divino ou na experiência religiosa, quanto à sua apreensão, a mesma seria incompreensível, nada podendo ser dito sobre ela, sendo, assim, incognoscível (OTTO,1985,P.8). Portanto, a religião tem algo de racional, mas não se esgota racionalmente e/ou não se reduz ao racional, conservando elementos não-racionais (OTTO,1985,Pgs.7-9). A religião é, assim, concomitantemente, sempre racional e não-racional (irracional).

          Na sequência, Otto concebe o racionalismo, oposto radicalmente à religião, nesse sentido, como o reducionismo racional e/ou esgotabilidade racional da religião ou ideia do divino. Em outras palavras, a oposição entre a religião e o racionalismo se dá quando esse último pensa poder esgotar racionalmente a primeira e/ou reduzi-la ao racional (OTTO,1985,Pgs.8-9). O elemento racional não sobrepuja, nem exclui o elemento não-racional na ideia de Deus (OTTO,1985,P.8). “[...] a religião não se esgota em anunciados racionais, e em colocar em evidência a relação de seus elementos de tal sorte que ela tome consciência de si mesma” (OTTO,1985,P.9).  Conceber, então, que a religião pode ser esgotada racionalmente, por seus anunciados racionais, predicados racionais, noções e conceitos, ignorando seu caráter não-racional, é puro e verdadeiro racionalismo (OTTO,1985,P.8-9).O autor ressalta, outrossim, que a perspectiva meramente racional (ista) de Deus na própria ortodoxia (cristã) ignora o caráter não-racional da religião, expresso na experiência religiosa (dos místicos, por exemplo) e que, dessa forma, a ortodoxia se mostra racionalista, não salvaguardando “o elemento não-racional de seu objeto” (OTTO,1985,P.9), a saber, não mantendo “viva a experiência religiosa”.


          Para Otto, o Sagrado é o numinoso não-racional, nem racionalizantemente esgotável, da experiência religiosa, em seus aspectos diversos (OTTO,1985,Ps.11-15). O numinoso diz respeito ao elemento vivo da religião ou experiência religiosa, abstração, outrossim, do elemento moral e do elemento racional (OTTO,1985,P.12). Concebe-se como sentimento de dependência, porém distinto da concepção dessa mesma dependência por Schleiermacher (OTTO,1985,Ps.13-14). O Misterium Tremendum é o aspecto do numinoso que, por sua vez, se desdobra no tremor místico, no majestas ou superioridade absoluta do poder numinoso e na energia desse último, a denominada orgé  que capacita e incita a vida religiosa (OTTO,1985,Ps.17-28). O mistério do numinoso é o fenômeno não-racional do mesmo que, paradoxalmente, nos aterroriza e nos afasta por sua incompreensão soberana, e alteridade absoluta, mas que também nos atrai e nos aproxima (OTTO,1985,Ps.29-45). Tenta-se compreender o tremendo e misterioso numinoso através da categoria do “sublime” e esquematizações analógicas (OTTO,1985,Ps.47-52). “O elemento numinoso, não-racional, esquematizado por noções racionais, dão-nos a categoria complexa do sagrado [...]” (OTTO,1985,Pgs.50-51).